Um bilhão de famintos nas estradas do mundo




Hoje, no mundo, há mais de um bilhão de pessoas famintas. O alarme chega da FAO [Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação], que, em seu último relatório, registrou um aumento de 9%. A crise econômica, portanto, levou para baixo da linha da desnutrição um sexto da população mundial. Não sem culpa dos governos, mais preocupados com os mercados financeiros evidentemente: “Os líderes mundiais reagiram com determinação à crise, mobilizando bilhões de dólares em um lapso de tempo muito curto. Agora, a mesma ação decisiva é necessária para combater a fome e a pobreza”, diz o diretor-geral da FAO, Jacques Diouf.

Novidades também no fronte da geografia da fome. A desnutrição atinge agora principalmente a Ásia e as áreas do Pacífico, onde os famintos são mais de 642 milhões. Mas não é um fenômeno desconhecido nem nos países desenvolvidos, onde 15 milhões de pessoas não têm o alimento necessário para o seu sustento.

Mas não são só as políticas do Ocidente que acabam no alvo. A intelectual indiana Vandana Shiva defende: “Foram os métodos de desenvolvimento equivocados que causaram a fome de centenas de milhões de pessoas. E a FAO também é responsável por isso”.

A reportagem é de Francesca Caferri e Anais Ginori, publicada no jornal La Repubblica, 15-10-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

O alarme lançado ontem pela FAO não surpreende Vandana Shiva. Pelo contrário, a indigna. Há muitos anos essa cientista indiana especialista em agricultura e desenvolvimento, famosa em todo o mundo pelas suas batalhas contra a globalização, defende que as tendências atuais levarão milhões de pessoas à fome, principalmente nos países pobres.

“O fato de que hoje a FAO lança esse alarme depois de, durante anos, ter defendido os métodos de desenvolvimento que causaram a fome de milhões de pessoas me deixa verdadeiramente com muita raiva”, explica. “Hoje, nos dizem que um bilhão de pessoas passam fome. Eu acho que se deveria perguntar o porquê. O porquê é explicado há muitos anos pelos especialistas, economistas e climatologistas como eu, que a FAO não ouviu. Há estudos qualificados que defendem que as monoculturas tornam a agricultura mais vulnerável, e que o uso de fertilizantes químicos contribui para as mudanças climáticas. Porém, a FAO defendeu o uso dessas substâncias. A Índia, neste ano, perdeu boa parte das suas colheitas por causa de enchentes e secas, efeito das mudanças climáticas. Há agricultores famintos. Outros que se suicidaram. E o anel inicial da corrente está nessas políticas, que a FAO apoiou, mas das quais denuncia os efeitos”.

Eis a entrevista.

Está dizendo que a denúncia de ontem é inútil?

Não, digo que ela chega com atraso. Mas talvez agora eles também vão entender que pensar “business as usual” não é mais possível. É preciso repensar qual modelo de agricultura se quer. É importante prestar atenção nas cooperativas, nas mulheres que estão no campo, nos modelos territoriais.

O diretor da FAO, Jacques Diouf, apontou o dedo contra a crise econômica e as consequentes reduções dos financiamentos, dentre outras coisas. A senhora compartilha pelo menos dessa parte da análise?

Mais dinheiro para coisas erradas só tornarão a agricultura mais vulnerável. Mais dinheiro para comprar substâncias químicas significa, a longo prazo, aumentar o número das pessoas que irão sofrer com a fome. Significa colocar os produtores em uma armadilha sempre mais profunda: deverão fazer mais dívidas para comprar sementes transgênicas e produtos fertilizantes. Se esse é o caminho, não virá nada bom dos financiamentos. Poucos ou muitos.

Qual caminho seria preciso seguir, em sua opinião?

Dar dinheiro de um modo correto. Apoiar a agricultura de pequena escala, o uso das sementes locais. Oferecer apoio a quem investe no biológico. E não dar subsídios para os fertilizantes químicos.

Segundo a senhora, quais são as responsabilidades dos países ricos?

Elas impuseram o uso de transgênicos: fizeram isso com a arma do dumping, oferecendo subsídios aos produtores dessas substâncias, que puderam, assim, ser vendidas a baixo custo nos países pobres, criando uma dependência.

É um processo reversível?

Talvez. Mas é preciso, sobretudo, ser parado. Nesse sentido, a crise econômica pode, ou melhor, deve ser uma oportunidade. Voltar a uma escala local de produção e de consumo, apoiar o biológico. E acabar com os subsídios que, lembremo-nos, são pagos pelos contribuintes: seria bom que fossem usados de outro modo.

Mas os supermercados biológicos são muitas vezes sinônimos de “caro”…

Por causa dos subsídios. Se não existissem, não seria assim. Há países e regiões que interromperam o ciclo e demonstraram com fatos o que eu estou dizendo: tomemos o caso de Cuba, do Brasil ou da Toscana, que recebeu reconhecimentos em nível mundial pelo seu modelo agrícola de excelência, que tem base local e repudia os transgênicos.

 Fonte: Mercado Ético