Proposta de órgão de direito privado na saúde é rechaçada
A criação do Serviço Social Autônomo de Gestão Hospitalar (SSA-Gehosp) para gerir unidades hospitalares da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (Fhemig) seria mais uma tentativa “camuflada” de privatizar o Sistema Único de Saúde (SUS) no Estado.
É o que denunciaram a maioria dos participantes da audiência pública da Comissão de Administração Pública realizada na tarde e noite desta terça-feira (2/4/24), na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG). A reunião, que durou quase cinco horas, foi conduzida pelo deputado Roberto Andrade (Patriota), vice-presidente do colegiado.
Embora os representantes do Executivo, autor da proposta, defendam que a iniciativa é essencial para ampliar e melhorar a qualidade dos serviços, parlamentares de oposição, Ministério Público, conselhos de saúde e sindicatos repudiam o modelo e exigem ampliar a discussão. Por isso, defendem a suspensão da tramitação do Projeto de Lei (PL) 2.127/24, de autoria do governador Romeu Zema, que contém a proposta e aguarda parecer de 1º turno nas comissões da ALMG.
O debate atendeu a requerimento da deputada Beatriz Cerqueira (PT), que se diz preocupada sobretudo com o impacto sobre os servidores da saúde. A parlamentar alega que essa seria apenas a mais recente tentativa de privatização da saúde pública no Estado, estratégia que estaria em curso desde que o atual governador assumiu o cargo, em 2019.
Servidores públicos poderão ser cedidos para ente privado
O SSA-Gehosp, de acordo com as explicações do governador que acompanham o PL 2.127, será uma pessoa jurídica de direito privado sem fins econômicos, de interesse coletivo e de utilidade pública, com prazo de duração indeterminado e que atuará na prestação de serviços públicos de saúde, exclusiva e gratuitamente aos usuários do SUS, de forma complementar às políticas públicas de saúde do Estado.
O texto estabelece que o órgão observará os princípios e as diretrizes do SUS previstos no artigo 198 da Constituição da República e no artigo 7º da Lei Federal 8.080, de 1990, bem como as políticas, as diretrizes estratégicas e normas do Ministério da Saúde, da Secretaria de Estado de Saúde (SES) e da Fhemig.
De acordo com o artigo 3º do projeto de lei, caberá ao Poder Executivo estabelecer as áreas de atuação assistencial do SSA, de acordo com a Política Estadual de Saúde e o planejamento estratégico da Fhemig. Mediante ajustes, convênios e contratos de gestão, o órgão poderá atuar:
• Na prestação de serviços de saúde e assistência hospitalar;
• Na promoção da qualidade e da eficiência na prestação dos serviços de saúde, com a adoção de mecanismos que possibilitem a integração entre o setor público, a sociedade e o setor privado;
• Na execução de políticas públicas de saúde e no desenvolvimento de programas de formação e educação permanente dos agentes com a atuação na saúde, de extensão e de pesquisas sobre temas relacionados à área.
De acordo com o artigo 15 do projeto de lei, o SSA-Gehosp poderá contratar pessoal nos termos da legislação trabalhista. De acordo com o artigo 16, o novo órgão seguirá regulamento próprio para contratação e administração de pessoal e poderá conceder gratificações conforme o alcance de metas e resultados. Já o artigo 17 autoriza a cessão de servidores públicos para o SSA-Gehosp, observada a legislação específica.
Bens, instalações e equipamentos públicos poderão ser destinados ao SSA-Gehosp, conforme legislação vigente. As receitas do novo órgão serão constituídas por subvenções do poder público, recursos provenientes da celebração de convênios ou de contrato de gestão, recursos provenientes da celebração de contratos com instituições públicas e privadas, receitas próprias provenientes de suas atividades ou receita provenientes de outras fontes.
Por fim, o artigo 18 determina que a Fhemig prestará apoio logístico, operacional, administrativo e material para o funcionamento do SSA-Gehosp, até a sua completa organização.
O que faltaria é dinheiro, não novo modelo de gestão
Entre as críticas à ideia, a promotora Josely Ramos Pontes, da 2ª Promotoria de Justiça de Defesa da Saúde, apontou que o PL 2.127 combinaria indevidamente duas figuras jurídicas da administração indireta, já que o SSA vai assumir funções de uma fundação, no caso a Fhemig.
A presidente do Conselho Estadual de Saúde, Lourdes Aparecida Machado, e o 1º-secretário do Conselho Municipal de Saúde de Belo Horizonte, Érico Colen, alegaram que as duas entidades não foram consultadas, contrariando o que preconiza o SUS com relação ao controle social.
“Temos que reforçar o financiamento do SUS, não repassá-lo a instituições privadas. Esse projeto não tem legitimidade e não pode continuar tramitando. Ele prevê que os conselhos sejam chamados depois para participar de um modelo em que deveriam ter sido chamados já para sua concepção”, pontuou Lourdes Machado.
Ela disse ter encaminhado uma lista de dúvidas dos conselheiros sobre o projeto para o Executivo, que não teria ainda respondido.
“O principal gargalo do SUS não é o modelo de gestão, mas a falta crônica de financiamento. Como servidor público da saúde me preocupa como essas ideias nascem do nada nesse governo, já que os estudos que temos apontam que no SUS produzimos mais com menos”, completou Érico Colen.
Hospital Alberto Cavalcanti é o primeiro alvo
O secretário de Estado de Saúde, Fábio Baccheretti, apontou que a iniciativa atenderá a uma deficiência atual da Fhemig em atender sobretudo a chamada alta complexidade na saúde pública, como as necessidades dos pacientes com câncer, por exemplo. Nesse aspecto, o primeiro alvo do SSA deve ser o Hospital Alberto Cavalcanti, em Belo Horizonte, de atuação destacada nesses casos, conforme também confirmou a presidente da Fhemig, Renata Ferreira Leles Dias, em sua apresentação.
Ao contrário do que diz a gestão, o novo modelo rompe com a gestão pública da unidade e preocupa os defensores do Sistema Único de Saúde (SUS). Os trabalhadores do HAC sequer foram chamados pelo governo para debater a suposta transferência da gestão para empresa de direito privado.
Essa modalidade de gestão é ainda mais desvinculada do setor público que as antigas Organizações Sociais (OSs), modelo que Zema insistentemente buscou adotar nas unidades hospitalares do Estado. Se implementada, a SSA foge de obrigações impostas ao serviço público, como a transparência dos gastos, princípio da legalidade e poderá editar suas próprias normas de contratação e seleção de pessoal.
O governo tenta impor essa transferência sem dialogar com a população. Dar visibilidade aos interesses envolvidos por detrás desse projeto é o ponto de partida para os servidores do HAC que pretendem derrubar a proposta junto com deputados estaduais e a sociedade mineira.