Privatizações na Saúde uma afronta a Constituição

A prestação do serviço público de assistência à saúde é função típica do Estado, a ser custeada pela ordinária arrecadação de tributos gerais. É dever do Estado e direito fundamental do cidadão.

É o Estado brasileiro uma república democrática, o que pressupõe a colocação dos recursos arrecadados à disposição de todos, garantindo-se o exercício da cidadania e o tratamento digno de todos os cidadãos (CF, art.1º e 227), sobretudo quando se verifica que são objetivos fundamentais do Estado a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, bem como a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais (CF, art.3º). Para alcançar tais objetivos, assegurou a Constituição Federal, como direitos sociais, a educação, a saúde, o trabalho, a proteção à infância e a assistência aos desamparados (CF, art.6º), dando especial destaque ao fato de que a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (CF, art.196).

Inspirando-se, aliás, na Declaração francesa dos Direitos do Homem, de 1789, que apontava como fundamentais os direitos à liberdade, segurança, propriedade e à resistência à opressão, estabeleceu a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:…

Ora, é a vida, por pressuposto a todos os demais direitos, um bem indisponível do cidadão. E a vida há de ser protegida pelo Estado em toda a sua integridade. Não basta que se assegure a sobrevida. É indispensável que, se possível, preventivamente, sejam garantidos os meios necessários para a manutenção da saúde física e mental de cada um e de todos os cidadãos.

Só complementarmente à função típica do Estado é que pode a iniciativa privada explorar os serviços de assistência à saúde pública (CF, art.199; Lei nº8.080/90, arts.2º, §2º, 4º, §2º e 24).

Não pode o Estado, então, deixar de prestar esse serviço público essencial, como se pudesse ser substituído por completo pela iniciativa privada.

Quando as suas disponibilidades forem insuficientes para garantir a cobertura assistencial à população de uma determinada área, o Sistema Único de Saúde (SUS) poderá recorrer aos serviços ofertados pela iniciativa privada (Lei nº8.080/90, art.24).

Repita-se, a iniciativa privada complementa a atividade do Estado. Não o substitui em hipótese alguma, a menos que se queira subverter a ordem constitucional.

Sob esse raciocínio, o único admissível, pode o Estado, para tornar mais abrangente a prestação do serviço público, até desapropriar ou requisitar equipamentos privados. Nunca o contrário, ou seja, não pode ceder equipamentos públicos (recursos materiais e humanos) à iniciativa privada para a prestação de tais serviços.

De uma forma ou de outra, não importa que o governante tenha essa ou aquela ideologia, mais ou menos estatizante ou desestatizante das funções, atividades ou serviços de interesse público. O que importa é que o regime adotado constitucionalmente pelo Estado brasileiro é o republicano que, específica e concretamente, preferiu reconhecer como essencial função estatal o serviço de saúde pública, só admitindo a sua exploração pela iniciativa privada complementarmente.

Escrito por: Airton Florentino de Barros – Procurador de Justiça e integrante fundador do Ministério Público Democrático.

Fonte: Correio da Cidadania