Entrevista: “O problema do SUS não é só dinheiro”
Em entrevista concedida ao jornal Tribuna do Norte no último domingo (27), o Presidente do Conselho Nacional de Saúde, Francisco Batista Júnior, falou dos principais problemas e desafios do Sistema Único de Saúde. Leia a íntegra da entrevista.
O presidente do Conselho Nacional de Saúde, Francisco Júnior, não tem meias palavras. Para o potiguar de Pau dos Ferros que dirige uma das principais entidades de saúde do país, o Sistema Único de Saúde vive uma crise que inviabiliza o atendimento à população nos quatro cantos do Brasil. Numa conversa franca com a reportagem da TRIBUNA DO NORTE, Francisco Júnior falou sobre os problemas na saúde pública do Rio Grande do Norte, das interferências da iniciativa privada no sistema público e nas carências do sistema. “O problema do SUS não é só de financiamento. É uma ilusão achar que apenas com mais dinheiro iremos resolver os problemas da saúde no Brasil”, diz Júnior.
Quais as principais preocupações do Conselho Nacional de Saúde neste momento?
Uma das questões é a regulamentação da Emenda 29. Em 1990, nós conseguimos aprovar uma emenda constitucional que estabeleceu o piso mínimo dos municípios, de 15%, o piso mínimo dos Estados, de 12%, mas não estabeleceu o piso do Governo Federal, o que foi um problema. E também não regulamentou o que deve ser reconhecido como investimento em saúde e nem regulamentou uma fiscalização mais efetiva do seu próprio cumprimento. Então, a regulamentação que nós tentamos fazer desde 2001 é justamente para equacionar isso aí.
O senhor acha que o governo federal investe pouco em saúde?
Investe sim, muito pouco. Nós temos um sistema de saúde que não existe igual na América do Sul. Você não tem um sistema universal, que atenda a todo mundo, e não tem um sistema integral, que tenha praticamente todos os procedimentos. Mesmo com um sistema como esse, nós investimos menos que a Argentina, menos que o Chile, proporcionalmente para cada cidadão. Quanto aos países de primeiro mundo, nem se compara. A Inglaterra investe cinco vezes mais. Os Estados Unidos investem 20 vezes mais. Mas aqui tem um ponto interessante. O fato de você investir uma soma vultuosa não significa necessariamente que você vá ter uma sistema impecável. Os Estados Unidos são um dos países que mais investem em saúde e lá existem 50 milhões de excluídos. O problema não é só ter dinheiro. Dinheiro é um dos problemas, mas temos outros leques de problemas que se nós não resolvermos podem colocar o dinheiro todo do mundo que não melhora.
Alguns dos problemas desses países são parecidos com os nossos?
Sim. O nosso modelo é bastante parecido com o norte-americano. Lá é tudo privatizado. Também não tem uma rede de saúde preventiva, com prevenção de doenças e cuidados com a saúde de uma forma mais ampla. Em último lugar, eles trabalham prioritariamente com a alta especialização, outra característica comum. Então, num sistema de alta especialização, que não tenham ações intersetoriais, que é eminentemente privado, o resultado é a exclusão.
Se a falta de dinheiro não é o único problema, quais os outros problemas do SUS?
São 20 anos de SUS. E por isso estamos propondo, no Conselho Nacional de Saúde, um grande debate para discutir esses problemas. Vamos discutir esses assuntos numa grande caravana nacional, que irá mobilizar a sociedade, os poderes, a mídia, etc. Porque as pessoas, os jornalistas, sempre me perguntam: qual o principal problema? Para mim, o principal problema é a impunidade. Porque se o problema da impunidade fosse resolvido, se as pessoas que obstruem o sistema fossem punidas, os outros problemas estruturais não existiriam. Então, nós aprovamos um texto com um diagnóstico e vamos percorrer o país a partir dessa chave-mestra.
Que diagnóstico vocês fizeram?
Eu cheguei a pensar que esse diagnóstico que nós fizemos em Brasília pudesse não se adequar a uma ou outra região do país, mas percebi que é um diagnóstico que se adequa a todos os Estados do país. Então, a primeira coisa que temos é que o problema do SUS não é só dinheiro. Segundo é que o SUS vive uma grande crise de gestão, que, na minha visão, não será resolvida entregando a gestão para entidades de direito privado como o Ministério da Saúde tem feito. Mas é claro que por trás dessa crise de gestão existem interesses muito claros. Eu nunca vi ninguém por exemplo dizer que é contra a emenda 29, que vai aumentar o valor gasto pelo Governo Federal com saúde. Nunca vi ninguém. Contudo, já são nove anos que essa emenda espera por votação. Então tem gente muito poderosa que é contra a emenda 29, que quer que o SUS patine cada vez mais. Quem são essas pessoas? Os donos de hospitais privados, planos de saúde, pessoas que exploram esse mercado.
A questão é a influência de grupos privados?
Claro. O problema é que a administração pública no Brasil sempre foi patrimonialista. O poder público sempre foi dominado por grupos organizados. Então, quer ver a coisa pública funcionar? Vamos profissionalizar a gestão, vamos retirar a influência política nessa gestão. É preciso fazer valer a constituição, quando diz que até os cargos de direção tem que ser um servidor de carreira, do próprio órgão, com curso de gestão.
O modelo de atenção à saúde do SUS também é uma questão?
Sim. Quando nós criamos o SUS, e eu participei desse debate, foi deixado bem claro que para esse sistema ter êxito, seria necessário uma gestão profissional e um modelo de atenção à saúde e não um modelo para tratar a doença. Nós temos um sistema de vacinação que é exemplo para todo o mundo, é verdade, mas ainda sofremos muito com a falta de prevenção. A população brasileira, de maneira geral, continua achando que saúde é ser atendido num pronto-atendimento por um médico quando houver uma doença. Está errado porque saúde é uma coisa mais ampla. E o Ministério da Saúde não tem feito nada contra isso. O Governo Lula significou um avanço em vários pontos, mas é preciso admitir que na área da saúde não se avançou quase nada. Tivemos alguns avanços, é verdade, mas bem pequenos. Se eu fosse dar uma sugestão ao Ministério, seria fazer uma grande campanha pelo país pela medicina preventiva, para diagnosticar preventivamente e iniciar uma nova cultura de saúde. O Brasil é um dos países com maior nível de acidente vascular cerebral, transplante cardíaco, ataque do coração, etc, tudo por conta de diabetes e hipertensão. E as pessoas só sabem que estão com essas doenças quando tem uma crise grave. Então, esse não é o modelo que o SUS preconiza. E o Governo pecou quando não tentou modificar essa questão.
E a questão dos médicos?
Também há uma crise na gestão do trabalho. Eu estive conversando com o secretário de saúde de Boa Vista, em Roraima, que me disse: “Júnior, eu estou oferecendo R$ 22 mil para um cardiologista e não tem quem queira ir”. E eles não vão nunca mesmo. A mesma coisa a governadora Wilma de Faria me disse uma vez: “Júnior, eu pago R$ 1,5 mil por plantão para um neurocirurgião do Walfredo e eles ainda botam dificuldade”. Eu respondi: Governadora, o Estado está pagando, ao mesmo neurocirurgião, de R$ 5 mil a R$ 10 mil por um único procedimento lá na Clineuro, aqui em Natal. Aí os casos chegam ao Walfredo Gurgel, o paciente é estabilizado e ficam ali à espera do momento certo de ir para um hospital privado. Eu continuei: Governadora, se nós formos ao Walfredo Gurgel agora mesmo, vamos ver uma fila de pelo menos dez pessoas com politrauma para cirurgia e duas salas prontas, com profissionais disponíveis que não fazem a cirurgia com o argumento de que o Walfredo não faz cirurgia eletiva. Onde é que está escrito isso? Por que o Walfredo Gurgel não faz também? Porque ficam esperando para mandar o paciente para uma clínica particular. Enquanto não fecharem a torneira desse câncer que drena o SUS, nada vai ser resolvido. Há dez anos , eu ai ao Centro Clínico da Ribeira, à Policlínica do Alecrim, e tinham quase todas as especialidades disponíveis. Por que a saúde pública foi continuamente sucateada? Para atender à demanda de grupos privados.
Há uma incompatibilidade entre o público e o privado na saúde?
Há uma crise da relação entre público e privado no SUS. A Constituição é muito clara. O público é o principal e o privado complementa no que o público não puder, provisoriamente, oferecer. Mas não é isso que acontece. Em Natal, por exemplo, quase a totalidade dos procedimentos de alta complexidade não funcionam sem a iniciativa privada. Em grande parte, os gestores são prisioneiros desse sistema privado. Eu, particularmente, tento ter muito cuidado ao criticar um gestor, porque sei que qualquer gestor que esteja disponível e bem intencionado para resolver os problemas da saúde terá problemas sérios.