Lições brasileiras do começo do fim da crise em Honduras
Os negociadores do diálogo em Honduras anunciaram nesta quarta-feira (14) que “consensuamos um texto sobre o ponto 6″ do Pacto de San José”, que trata da recondução do presidente eleito, Manuel Zelaya. Ainda é preciso o aval do usurpador Roberto Micheletti, que refuga. Mas tudo indica que é o começo do fim do golpe de 28 de junho. Caso se confirme, será um gol de placa da democracia na América Latina: gol de Zelaya, numa jogada onde o Brasil teve um papel chave.
Por Bernardo Joffily
É certo que o diálogo hondurenho “não terminará enquanto não tiver terminado”, como opinou acaciana e prudentemente, em Washington, o secretário-geral da OEA (Organização de Estados Americanos), Miguel Insulza. MasInsulza agregou que “os acordos substantivos foram adotados”.
‘Goriletti’ só pode ganhar tempo
Em tese, ‘Goriletti’ – como o chamam na Resistência hondurenha – pode rejeitar o acordo consensuado ao longo de uma semana entre os três negociadores escolhidos por ele próprio e os três de Zelaya. Ou pode tentar ganhar tempo.
É o que indica a primeira reação de Micheletti ao texto dos negociadores: “Estão pedindo que seja o Congresso que determine se ele (Zelaya) pode regressar ou não, mas isso é um assunto legal, definitivamente á a Corte Suprema de Justiça”, tergiversou. “Até o momento não há nenhum acordo”, disse ainda.
“Até este momento não há nenhum acordo final”, ecoou, depois de falar com Micheletti, um comunicado dos seus negociadores. Admitiu porém que “as negociações progrediram rapidamente” e chegaram ao “ponto mais difíci, a restituição ou não do ex-presidente Zelaya”, em um “diálogo cordial” em que “alcançamos importantes avanços”.
Zelaya agora contemporiza
Antes de falar com Micheleti, a própria chefe da sua comissão, Vilmna Morales, dissera, ao contrário, que havia “consenso” na mesa de diálogo, em torno de “um texto único”.
Em 109 dias como inquilino da Casa de Governo, Mucheletti mostrou ao mundo que não deve ser subestimado em matéria de truculência, grossura e torpeza. Mas a disposição dos seus próprios negociadores mostra a que ponto ele está isolado, inclusive no interior da diminuta oligarquia hondurenha, fustigado pelos incansáveis protestos da Resistência, sem um único país que o reconheça, sob pressão da OEA e da ONU.
Até as ambiguidades da diplomacia dos Estados Unidos na crise hondurenha devem ser lidas em seu verdadeiro sentido. O notável é que o Tio Sam seja agora ambíguo face a um golpe latino-americano, quando no passado recente ou remoto sempre deu um nada ambíguo apoio aos golpistas.
“Se há mudança no texto, que se volte à mesa e se torne a discutir. Concedemos essa faculdade às comissões”, reagiu um contemporizador Zelaya à renitência de Micheletti. O presidente sabe que o vento passou a favorecê-lo. Disse também, sem dar detalhes, que a comissão ainda trabalha na redação final do texto.
Para Serra, uma “tremenda trapalhada”
É o começo do fim. A consumação possa demorar horas ou um pouco mais, mas já se impõe a necessidade de fazer rescaldo da crise, e de suas conexões externas. Inclusive a brasileira.
Sim, porque o Brasil terminou jogando um papel importante nos acontecimentos, quando Zelaya retornou clandestinamente ao seu país e obteve abrigo na embaixada brasileira, no último dia 21. Desde então a crise hondurenha passou a ter uma conexão brasileira. O tema Honduras introduziu-se no debate brasileiro. E, como era de se esperar a apenas um ano da eleição presidencial, polarizou-se.
Foi de estarrecer o que escreveu a mídia dominante e o que falaram os políticos demo-tucanos (afora os do PPS, que parece ter adotado o lema de que “quem não é o maior tem que ser o melhor” em ataques ao Itamaraty). O mais ilustre deles, o governador paulista e virtual presidenciável anti-Lula, José Serra, acusou o Itamaraty de se meter numa “tremenda trapalhada”.
“Eu não estou acompanhando em minúcias. Só estou achando que o Itamaraty se meteu numa tremenda trapalhada que não vai ser fácil desfazer”, disse Serra, no dia 29, durante a inauguração de uma escola, quando a imprensa perguntou sobre a possibilidade de um ataque à embaixada. “Eu já fui exilado duas vezes – no Brasil e no Chile – e o que tem lá do Zelaya não é um asilo”, acrescentou.
A torcida da mídia contra o Itamaraty
“O governo ainda não fez sua auto-crítica com relação à crise de Honduras, apontada como a maior trapalhada da história diplomática do país”, ecoou o jornalista Ruy Fabiano, no Estado de S. Paulo. Defendeu que “solução mais sensata, num mar de insensatez”, seria “conceder status de asilado a Zelaya”, para que ele viesse viver como refugiado no Brasil – tudo que os golpistas queriam.
“O Brasil teria o dever de agir na direção oposta, insistindo no diálogo. Mas preferiu dinamitar as pontes, substituindo a diplomacia pela ideologia. No Itamaraty, é a hora e a vez dos amadores”, fulminou o impagável Demétrio Magnoli.
A Folha de S.Paulo disse em editorial que a diplomacia do Itamaraty é “aventureira “, que “o Brasil se intromete mais do que deve em Honduras e toma atitude estranha de negar-se ao diálogo com o governo de fato”. No jornal matutino da TV Globo, Alexandre Garcia chamou Zelaya de “golpista”. Um editorial do Estadão apontou o “fiasco” da OEA por ” repetir a fórmula inspirada por Hugo Chávez e instigada pelo Itamaraty: Micheletti deve sair e Zelaya deve voltar ao governo”.
Uma pergunta a José Serra
Na medida em que a crise dá sinais de se aproximar de uma saída, essa gente anda com as barbas de molho. Eles apostaram alto no quanto pior melhor, quem sabe com uma invasão da embaixada brasileira pelo exército de Honduras para capturar o “golpista Zelaya”. Veremos o que dirão amanhã caso Micheletti saia e Zelaya volte.
Quando o presidente deposto voltou ao seu país clandestinamente e pediu a proteção da embaixada brasileira, teve um gesto de coragem. Antes do 21 de setembro, Honduras parecia condenada a uma longa agonia, cada vez mais longe das manchetes. Foi o retorno de Zelaya que revigorou a Resistência, abriu brechas na frente pró-golpe, reavivou a pressão externa, forçou o diálogo e agora parece propiciar uma saída.
Quando a diplomacia brasileira hospedou o presidente eleito de honduras em sua missão em Tegucigalpa, ficou do lado da democracia e da solidariedade. O Itamaraty, e Lula, não buscaram protagonismo na crise hondurenha. Mas, atirados no olho do furação, souberam se comportar à altura. A boa diplomacia reclama habilidade e flexibilidade, mas igualmente convicções e princípios.
A impecável correção brasileira, além de coerente, foi arguta. Percebeu na volta de Zelaya, não uma atitude “irresponsável” de “mocinho de cinema”, como disse num momento de grosseria um diplomata americano, mas uma bem-vinda e promissora janela de oportunidade, como bem descreveu no Senado o chanceler Celso Amorim.
Isso teve também os seus efeitos colaterais. Gerou a conexão brasileira da crise, trouxe o debate hondurenho para dentro do Brasil e deu ensejo às opiniões citadas acima. Mas agora, que a saída está à vista, será a hora de perguntar a José Serra de quem foi a “tremenda trapalhada”.
Fonte: Vermelho